Policarpo Quaresma, de Antunes Filho
Por Marcelo Coelho
Há tempos eu não assistia nenhuma peça dirigida por Antunes Filho. Reencontro em “Policarpo Quaresma” (Sesc Vila Nova) a mesma habilidade em encher os olhos do espectador com grandes cenas de grupo, numa movimentação de massas “corais” por vezes inesperadas (é o caso de uma multidão de loucos de camisola, quando nos apercebemos que Policarpo acaba de ser internado num hospício).
Para quem vê um espetáculo de Antunes Filho pela primeira vez, tudo deve parecer próximo de genial. De minha parte, menos do que uma característica apenas do estilo do diretor, sobressai um ar de truque.
Correrias desabaladas atravessam o palco sempre que o diálogo se arrisca a ficar um pouco chato. Cenas que poderiam ficar um pouco mais solenes ou dramáticas são estilizadas, com os atores andando de perfil em câmera lenta.
A estilização, de fato, parece ser mais importante do que o estilo: resume-se, com efeito, a uma série de procedimentos reconhecíveis (pétalas ou confettis jogadas para o alto, objetos cênicos com rodinhas empurrados a toda velocidade, um certo empenho em esfalfar os atores ao máximo...)
Quando se tratava de encenar Nelson Rodrigues, tenho impressão de que esse jeito estilizado, a maquiagem como máscara, a gesticulação como uma espécie de dança sem música, fazia sentido. O realismo cru seria uma ameaça estética no teatro de Nelson Rodrigues, e a fala dos atores, seu modo de se moverem, de rir e de se agruparem em cena tinham o mesmo efeito daqueles nomes próprios dos personagens rodriguianos, ao mesmo tempo reais, plausíveis, e vagamente fora de foco, como numa antiga foto em preto e branco: Herculano, por exemplo.
Mas “irrealizar” a história de Policarpo Quaresma, que não tinha o espírito de exacerbação suburbana das tragédias de Nelson Rodrigues, é uma opção a meu ver muito errada de Antunes Filho. O espetáculo fica parecendo uma opereta sem música suficiente, ou então um daqueles “resumões” teatrais dos clássicos da literatura brasileira exigidos pelo vestibular.
Policarpo é, como sabemos, um maluco que luta pela adoção do tupi-guarani como língua oficial do Brasil. Uma opção do diretor seria mostrá-lo assim, como uma espécie de Quixote, em conflito com a banalidade, a desonestidade e a estreiteza de seu ambiente real. Outra opção seria mostrá-lo como o único tipo sensato, num ambiente dominado pela loucura coletiva. Antunes Filho escolheu as duas coisas: é um maluco no meio de um ambiente totalmente tomado pela maluquice; Policarpo é tão caricato quanto os demais personagens. Ou melhor, a caricatura é feita do mesmo modo, tanto no Policarpo que aparece como um Visconde de Sabugosa, quanto nos outros personagens: soldadinhos de chumbo num brinquedo infantil, uma negra velha que lembra algum personagem de Chico Anísio, parlamentares de bigodão falso...De modo que a história toda se apresenta como farsa.
Mas, se não há nada sério em jogo, se por exemplo a Revolta da Armada e as atitudes de Floriano Peixoto, que são foco de denúncia amarga nas páginas de Lima Barreto, aqui aparecem como uma espécie de piada sem sentido, fica um pouco difícil saber por que, afinal, escolheu-se encenar aquela história. Se nos dias atuais todos soubéssemos o que foi a Revolta da Armada, se atualmente todos conhecêssemos e prezássemos a historiografia oficial republicana, a peça serviria para desmistificá-la. Mas quando se diz que determinado episódio histórico, que desconhecemos, e que não tem nenhuma ressonância na política atual, “na verdade” foi uma farsa, entra-se na tarefa inglória de desmistificar algo que ninguém estava mistificando. É como se eu publicasse um artigo dizendo que a nova versão proposta pela teologia muçulmana para organizar a coreografia dos dervixes rodopiantes não deve ser levada literalmente a sério.
Tropas de brinquedo aparecem agitando a bandeira nacional em “Policarpo Quaresma”, como para mostrar a tolice que há em agitar a bandeira nacional para saudar o governo Floriano Peixoto.
Mas ninguém está saudando o governo Floriano Peixoto hoje em dia. Qual a “tradução” disto nos dias atuais? Que é tolo entusiasmar-se com o crescimento do PIB no governo Lula? Ou que ser anti-lulista é como ser um Policarpo Quaresma? Que Policarpo Quaresma hoje seria João Pedro Stédile? Marina Silva? Norberto Odebrecht? Que estamos tão corruptos, autoritários e atrasados como nos primeiros tempos da República?
Impossível saber; a “crítica”, que faz todos os personagens parecerem absurdos na montagem não tem adversário definido; é “crítica” abstrata, contra quem diz A e contra quem diz não-A.
Talvez se possa dizer, pensando nas últimas palavras de Policarpo, que se trata de uma autocrítica da geração de Antunes: acreditamos em ideais que não eram possíveis de realizar. Mas isso faria de Policarpo um personagem mais humano, mais sincero. E o que a peça mostra é sobretudo um boneco, um visconde de Sabugosa, uma caricatura, que não podemos tomar como real. A estilização, aqui, se torna puro irrealismo –não há nada de real com que pretendesse se contrastar; irrealismo geral, irrestrito, e no fim das contas irrelevante, como uma opereta.